terça-feira, 26 de abril de 2022

Feito de mim

E eu me perdi. 
Por tantas e inúmeras e incontáveis vezes, eu me perdi. 
Fui deixado, menino, às margens de mim mesmo. Sem saber se podia me adentrar, aprofundar-me em mim.
Molhei meus pés sem saber se lavava as mãos. Molhei as mãos sem poder lavar o rosto. 
O rosto sujo, cujo reflexo busquei na superfície desse rio que sou. E não encontrei.

Pronto para desaguar-me ao mar. Mas não fui. Não me deixei ir. Não me deixei ser.
Parado ali, na desculpa estapafúrdia do "nada", me torturei. Nada sei, nada sinto. Tenho nada. Sou nada.

Encontrei-me refletido e eu tinha a cara limpa. Pudemos conversar.
E ensinei-me. Na dor, mas ensinei-me. Vivi minha ditadura, camuflada em felicidade constante. Turbilhonando-me sentimentos, vozes, pensamentos, ensinamentos, vaos e inválidos. Invalidados.
O nada.
E na dor de ensinar-me e de aprender-me, fui. Quando todos já eram.
Pude ser. Quando deixei-me ser.

E hoje, sendo, sento à margem de mim, e vejo meu rio cursar, curveando por onde quer ir. Molho meus pés, nas minhas águas. E os tornozelos. As pernas. Mergulho-me. Afundo-me. Adentro-me e aprofundo-me. 
Que delícia ser. Enquanto percebo que os outros ainda nem são. Ainda buscam ser.
Que delícia já não camuflar-me mais em felicidade constante, mas preencher meus nadas com ela.
Ocupar-me comigo mesmo. Em observar-me, em ensinar-me com amor, em cursar meu rio e deixar-me desaguar no mar que também sou eu. Porque e feito de mim. Águas novas e águas passadas. Eu.

E agora, posso sentar-me à minha baía e observar o sol a nascer, as nuvens a passar, os pássaros a cantar. Posso chorar ou sorrir, cantar ou dançar, observando que o amanhã sempre vem. E há sempre uma nova oportunidade de encontrar-me. Por tantas e inúmeras e incontáveis vezes, encontrar-me. Sentado, menino, às margens de mim. Apenas sendo.

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