quinta-feira, 29 de abril de 2021

A minha rua

Me apoiei sobre o parapeito, como aquelas namoradeiras da vila. Cruzei os braços e joguei meu peso sobre eles, sentindo a brisa que batia. Olhei para um lado e para o outro, como se aquele fosse um olhar de despedida, como se meu olhar dissesse “vou sentir falta disso” e tentei observar todos os detalhes que via. Reparei no cachorro que andava virando latas, recebendo um carinho daqui e um safanão dali. Ouvi passarinhos cantando em sinfonia com a brisa, pousados sobre os fios elétricos.

De repente, vi um menino andando, brincava com seu irmão, na inocência da infância. Eles revezavam uma bicicleta e, claro, seu irmão mais velho andava por mais tempo que ele. Ele se emburrava, mas tornava a montar e andar, respeitando seu tempo. Até que foi a hora de se irem.

Enquanto acompanhava os meninos indo para um lado, vinha de lá um adolescente. Andava meio cabisbaixo, com fones de ouvido. Estava só. Cantava o que ouvia, como se ninguém reparasse. Mas eu reparei. Foi andando até que parou no meio da via e tocou uma campainha. Atendeu-lhe, uma menina de sua idade. Andaram e passearam e dividiram seu fone. E cantaram e dançaram juntos. E riram. E já não era cabisbaixo, mas ainda adolescente. Ela precisou entrar e ele seguiu andando a rua, pisando pensativo cada paralelepípedo. Até que encontrou um monte de outros garotos. Parecia querer fazer parte, mas não ser. Esses adolescentes. Quanta informação recebem, vãs e intensas ao mesmo tempo.

Perdi o menino de vista, quando ele se esbarrou em um jovem que saltitava, com um par de rosas na mão. Parecia ter encontrado o amor da sua vida. E foi saltitando, com aquelas rosas, por toda a rua. Dançou com o poste, fez carinho no vira lata, assobiou para os passarinhos e dançou tango com uma senhora que tropeçou em sua alegria. Deu-lhe um beijo na testa, entregou uma de suas rosas e seguiu saltitando. Sempre saltitando. Só pude sorrir, ao vê-lo.

Mais uma vez, ouvi o latido do meu companheiro e percebi que quase fora atropelado por um jovem adulto que passava, de terno, andando a passos largos, como se não prestasse atenção no cenário tão rico em que estava inserido. E em menos de um minuto, cruzou a rua inteira.

Estava perplexo ainda, quando resolvi absorver mais detalhes da via. E então percebi um outro rapaz, sentado ao meio fio, bem de frente a minha janela, chorando copiosamente. Tinha uma rosa despedaçada à mão. Era ele, o bailarino de tango. Recebia agora umas lambidas de amor. Tendo visto a rosa ao chão, sem vida, amassada, pretejada, a bailarina sentou-se ao seu lado, fez-lhe um carinho e tirou-lhe para dançar um romance e tomar um café e oferecer-lhe uma rosa. E foram, os dois, de braços dados, para o café da esquina.

Ao entrar, os dois tomaram esbarrões daquele moço que anda correndo, sem pensar em nada. Não vimos de onde veio. E não conseguimos acompanhar para onde ia. Apenas passou.

Passou como o tempo. E eu aqui, na janela. Quando dei por mim, já era anoitecer e percebi que aquela bicicleta dos meninos estava jogada no chão, beirando a calçada. E as crianças, de volta à rua, brincavam com um senhor. Tinha os cabelos brancos e ria ao jogá-los para cima. Eu não podia ouvi-los muito bem, mas tinha som de amor, cor de amor, sorriso de amor, sabor de amor, cheiro de amor. Marejei meus olhos, nessa imagem sinestésica de amor.

E a rua foi se esvaziando. O café fechou e o moço já conseguia sorrir. Recebeu um telefonema e foi andando, olhando para cima, procurando algum pássaro para assobiar, enquanto andava. A bailarina, se juntou ao senhor e partiram, os quatro de mãos dadas, intercalando as idades. O grupo de adolescentes se dispersava. Cada um para sua casa. E, quando sozinhos, mudavam suas feições e o sorriso desaparecia. Esses adolescentes. Tanta mutação repentina.

Entrei para meu jantar. E percebi que meus cotovelos doíam. Antes de deitar-me, fui fechar as janelas, pois já esfriava. Dei mais uma espiadela para a rua de minha casa. Vi lá no fundo, aquele moço desatento, passeando. Vinha com seu paletó aberto, incapaz de prestar atenção em uma coisinha sequer, mas percebendo tudo que havia a seu redor. Abraçado em algum outro jovem, também bêbado. Cantavam em voz alta, faziam carinho no cachorro, dançavam um tango trôpego com a alegria, assobiavam para os pássaros que já dormiam, viravam as latas culposa e embriagadamente, abriam os braços para sentir a brisa que batia. Afinal, nunca seria tarde para curtir a minha rua.

Decidi deixar as janelas abertas. Os meus olhos passearam pela rua, uma última vez. E eu repeti para mim: “vou sentir falta disso”.